A sombra na parede intimidava-o. Não porque se tratasse de uma sombra perigosa ou ameaçadora, mas apenas pela presença constante na sua realidade com luz. Às escuras, a sombra desaparecia da parede e isso tranquilizava-o. Contudo, depressa concluiu que a sombra poderia não se desvanecer na escuridão. Podia estar lá, no mesmo sítio, à espreita de uma nesga de claridade para evidenciar a sua omnipresença. Talvez o breu não limitasse as sombras, antes acentuasse as imperfeições da visão humana.Nesse caso, a sombra estaria sempre na sua realidade, indiferente à claridade ou à penumbra. Com essa certeza adquirida, a relação que mantinha com a sombra atingia preocupantes níveis de proximidade e isso nunca estaria disposto a tolerar.
Tentou olhá-la na zona do rosto, no sítio onde deveriam reinar as expressões que pudessem trair-lhe a frieza e denunciarem-lhe enfim as emoções que nunca antes manifestara. Todavia, a sombra não reagiu. Estava naquela parede, indiferente, como podia estar noutra superfície qualquer. Nas tintas.
Decidira porém ficar ali, serena e perfeita, envolta numa aura de mistério tão densa como o mais pesado dos silêncios que uma sombra pode, sem esforço, assegurar. Parecia determinada em acompanhá-lo até ao fim e mesmo um pouco para lá, testemunha isenta, eternamente calada, espectadora clandestina, parasita, de um reality show intransmissível e pessoal.
Julgar-se-ia superior, o reles efeito de luz. Mas nunca passaria de uma mera imitação, de uma cópia pirata do original que abraçara como uma obsessão. A cabra, com ares de reprovação que se adivinhavam, fáceis, fáceis, branco é galinha o põe, desenhava na parede as denúncias de todos os seus pecados e omissões. Um ovo de Colombo, afinal, pura artimanha para consumo de um parolo em decomposição emocional. Isto era o que ele pensava da sombra que entendia como assombração. Intimidavam-no os fantasmas e todas as manifestações do Além, acobardava-se com a vida para lá da morte que no seu entender não surgia depois da vida mas durante, como uma falsa surpresa no anúncio do fim.Também receava na sombra a sua franqueza brutal.
Tentou buscar um espaço na escuridão, farto de se ver desenhado na parede da sala como um homem sem razão concreta para viver, como um dependente. Tropeçou numa das garrafas vazias enquanto tacteava no vazio, cambaleava, o ponto de apoio que afinal não existia. De bruços no chão, incapaz de se mover, chorou os remorsos pela sua desprezível ingratidão.
A sombra na parede constituía a sua derradeira consciência crítica e na relação com essa amiga imaginária vislumbrava quão bem sucedido se revelava o seu projecto etílico de autodestruição. Sem nada mais a perder, expunha-se à sombra nas emoções infantis e nas vergonhas, vulnerável. Ela não abusava, compreensiva e leal, apenas copiava cada momento num efeito cinzento moldado por um corpo fustigado pela luz. Como uma marioneta, obediente e disciplinada, à medida dos desígnios de quem a quisera mover.
Lamentou a sua sombra prostrada, desajeitada, arrastada para o meio do chão.
Ele amava a sua sombra na parede tanto quanto a temia, decidiu. Apaixonado adormeceria, com o rosto espalmado no soalho, sobre o sal das lágrimas secas pelo sol a nascer. Nas paredes em seu redor a sombra, agigantada pela força luminosa do astro rei que irrompia por entre as persianas da montra da taberna, envolveu-o num abraço terno e espantou-lhe num susto, por breves instantes, o demónio da solidão que um dia o enlouqueceu.
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