Ouço o teu distante ladrar, rafeiro empoleirado sobre uma pilha de tijolos que engrandecem aos olhos de uns tolos a tua eloquência canina.
Entendo o teu sofrer, vadio enclausurado que te sentes ignorado e mordes sem sucesso os grilhões que te amarram a padrões que ladras em protesto.
E eu percebo o teu gesto, canídeo esganiçado, esse desespero ladrado é um apelo por atenção. Talvez um pouco de compreensão para o móbil da tua amargura, essa vida tão escura na casota que te aperta e tu tanto precisas exprimir.
Um colorido azulejo com o teu nome pintado, o nome de um marujo por dentro naufragado.
É a tua voz que se faz ouvir e só nós escutamos esse latir. É a tua voz tão desafinada que ecoa pela madrugada, ouvida por meia dúzia, a matilha macambúzia que te acompanha, cada um no seu quintal, e tu porque ladras mais alto és o rei do maralhal.
E cogito uma saída para essa cauda tão caída, tento abrir-lhe uma via para evitar a paralisia, congelada num momento esborratado pelo tempo, pendurada como liana para o macaco se agarrar em desespero de causa. Antes isso do que uma pausa para remodelações na loja dos caixões, aquele velório colectivo do teu orgulho tão altivo e que afinal acabou por morrer aos olhos de quem quer ver onde afinal mais te dói.
Agito-te um osso, prometo-te almoço e tu rosnas sem cessar. A tua fome a apertar é sede de conversa, não falta quem te aqueça a próxima refeição. Nem tens vida de cão, mas protestas! Tudo aquilo que detestas, latido ao vento num tom cinzentão.
Nem tens vida de cão, mas como está não gostas e a forma como o demonstras é a cantar o fado ladrado, esse uivo reprimido que o teu dono castiga se algum dia se fatiga da tua tendência para o mau humor. Ou se lhe chega algum rumor da tua lamentação sempre tão fina, essa traição tão clandestina a quem te alimenta e os vícios te sustenta, o dono que me dizem ser um teu amigo fiel.
E tu destilas esse fel, um desatino, quando até és um sortudo canino e só te faltam as pulgas para coçar. E coças até arranhar, nesse teu auto-flagelo que me agride como um martelo daqueles do São João.
Eu escuto essa voz de cão que ladras à distância. Mas tenho a consciência do drama fundamental, a psicologia animal de quem está habituado a conviver com o latido como forma de expressão.
Precisas de atenção porque és um rafeiro mimado e se dela te sentes privado mete um sorriso nesse focinho e eu serei um bom vizinho.
Talvez pingue de vez em quando um osso duro de roer, ou dois, mas tu acabas por aprender depois a controlar o nível do som quando a tonteira te agita.
E a abandonar esse tom hostil que só te prejudica.