21.6.07

ATÉ SEMPRE, PASSARINHA!

Estávamos então no momento de tomar decisões e eu tinha confiado ao coração a função executiva.
E o meu coração é muito prático nas suas escolhas. Nem pestanejou uma aurícula. Antes enviou ao cérebro ainda meio adormecido as instruções necessárias para que ele providenciasse um guião bonito mas verosímil para justificar o súbito desaparecimento da passarinha.

De cadáver em punho, deixei a mente esvoaçar pelo terraço enquanto congeminava a trama. Um pequeno ajuste aqui, outro pequeno ajuste ali e a estória foi aparecendo construída com a mestria de um adolescente acabado de chegar para jantar no meio das torradas matinais dos cotas.

A passarinha mostrara sinais de arrebitamento no dia anterior, depois de nutrida, e nascia a esperança de que estaria em forma para se reunir à família na manhã que se revelaria funesta.
Daí, era plausível que tivesse dado à sola.
E foi esse o caminho que o argumento seguiu.

Atão foi assim: eu, o pai tubarão chanfrado que a filhota reconhece como seu, ouvi a passarinha piar e, como é óbvio, tratei de imediato de acudir à sua aflição (porque lá fora piavam mais pássaros e podiam ser os papás da dita cuja).
E como o fiz?
Pegando na passarinha com a gentileza costumeira, levando-a a apanhar o ar fresco da manhã (sempre no pressuposto de que ela não sabia voar ainda, tão pequenita).

Vai daí, a bicha dá um impulso alado até à estrutura metálica dos baloiços catapultando-se acto contínuo para cima da vedação onde a aguardavam os outros passarinhos e ala que se faz tarde rumo a casa (que no caso concreto era o céu, mas essa parte teve que ser suprimida no filme), apesar dos esforços inglórios de um homem em cuecas a correr pelo terraço à vista da vizinhança (algo que não seria difícil de acreditar para uma filha minha).

Menti com os dentes todos, bem sei, e assim fraquejei no compromisso firmado quanto à verdade suprema. E esse é o dilema que partilho convosco afinal.
Este complicado papel da progenitura coloca-nos a toda a hora perante escolhas “impossíveis” e obriga-nos com frequência a contornar, vergar ou mesmo eliminar da equação alguns princípios e valores “sagrados” em prol dos que mais alto se erguem em certas condições.

E era aqui que queria chegar.

Aqui e ao facto cada vez mais evidente de que embora sempre bem vindas, algumas passarinhas podem efectivamente baralhar as contas de uma pessoa e trazerem no bico a água que nos dá pela barba (isto na óptica de quem já perdeu as cócegas).
E assim já posso dar o assunto por encerrado, uma vez expurgadas as minhas inquietações.

É por isto que vale a pena um gajo ter um blogue.
Melhor, só mesmo dois...

8 comentários:

Anónimo disse...

!!! Fizes-te bem. É certo que devemos prepara os nossos filhos para as realidades da vida de que a morte tem parte plena e total. No entanto, adiar o confronto cruel até que esses seres pequeninos e maravilhosos possam ultrapassar os obstáculos que a vida certamente lhe colocará no caminho, é o nosso dever. Afastar os espinhos e as pedras que os possam magoar, deixa-los viver um pouco mais a fantasia mesmo seja doloroso mais tarde descobrir que o Pai Natal não existe, sim é isso que devemos fazer. Beijos para ti e para a tua filhota.

Anónimo disse...

!!! Vou contar-te uma estória:

"É a história de um menino que pensava que não ia receber prenda alguma na noite de natal, pois o pai tinha morrido havia pouco tempo, mas compreensivo e bondoso nada reclamava. Naquela noite, vespera de natal, o menino mais uma vez foi espeitar a noite, pois estava convenciso de que todos os anos a estrela de Belém iluminava os céus para lembrar aos homens o amor que os devia unir.
Qual não foi o seu espanto quando sentiu no seu ombro alguma coisa mexer. Devagarinho rodou a cabeça pensando encontrar a mão de sua mãe., mas não, no seu ombro o que encontrou foi um lindo periquito azul que se aninhava cada vez mais debaixo da gola da sua camisa. Com muito cuidado pegou-lhe com as suas mãoszinhas trémulas de felicidade sem querer acreditar no que lhe sucedia. Sem dizer nada, pois não sabia o que fazer fechou-se no seu quarto de dormir. A mãe notando a sua quietude chamou-o: Kiquinho, o que estás a fazer? Foi então que ele "acordou" daquele sonho. - Mãe, vem ver o que jesus ma enviou. Na sua maozinha muito aninhado o periquito parecia adormecido. - Mãe, eu sou mais feliz que os outros meninos. Jesus sabia que tu não tinhas dinheitro para comprar um brinquedo, então enviou-me, não um brinquedo, mas um companheiro vivo para brincar comigo. E relatou o sucedido. Abraçados mãe e filho agradeceram em silencio, do fundo do seu coração a dádiva do céu.

Fui ao meu diário para transcrever esta estória. Aconteceu no natal de 1984. O Kikinho é o meu filho que hoje tem 33 anos e este relato por incrivel que pareça é verdadeiro.

shark disse...

Obrigado pelos beijos e pela história (bonita, pá)!
E olha que não é assim tão doloroso saber que o Pai Natal não existe porque o gajo manda os brinquedos na mesma por interposta pessoa... :-)

Anónimo disse...

Não se deve poupar muito os filhos das coisas desagradáveis porque a vida não os vai poupar com toda a certeza.

Mar disse...

Eu também tive uma passarinha! (aliáas tive duas, uma mais recentemente mas da antiga conto depois, noutra altura)
Exactamente da mesma forma que a sharkinha, a Violeta recolhe os bichinhos indefesos para trazzer para casa. E a história repetiu-se tal qual mas só até à parte do gajo maluco em cuecas no terraço que, comigo, não sucedeu. Por motivos óbvios mas também porque foi a Violeta que tentou devolver a passarinha aos céus e ela lá despareceu.
Mas a tua opção seria a minha, em circunstâncias idênticas, sem dúvida. :-)

shark disse...

Maria, aí é que reside o tal dilema. Por um lado uma pessoa quer prepará-los para o pior mas pelo outro o coração diz-nos para os pouparmos até podermos...

shark disse...

Não sucedeu por motivos óbvios, Mar? Não tens terraço, né? :-)))
Comigo também só aconteceu na ficção (tenho vizinhas muito impressionáveis) que inventei para colar um sorriso na cara da minha cria.
O feitio dela é praticamente uma réplica do meu (o pesadelo da herança genética...) e por isso sei que é muito sensível e delicada.
E é a minha menina, não aguento vê-la chorar...

Mar disse...

É isso, é isso...;-)))

E claro que todas as lágrimas que lhes pudermos evitar serão preciosas.