A porta do armário não abriu. Nem a murro. Decidiu então sair sem se barbear. Num Domingo, acabaria por ser questão de pouca monta. Mas acabou por lhe estragar o bom humor com que acordara.
Quase correu para o carro quando se apercebeu da bizarra criatura que se aproximava. Premiu ansiosamente o comando do fecho centralizado, mas nada aconteceu. A pilha acabara ali os seus dias. Teve de aturar a habitual ladainha acerca de factos sobrenaturais e charlatanices diversas que o vizinho de cima, o "bruxo", despejava sobre quem se atravessava no seu caminho. Nessa manhã, o tema incidia sobre sinais premonitórios.Nervoso, ia tentando abrir a porta da viatura com a chave, enquanto balbuciava desculpas de ocasião e "urgentíssimos afazeres". Só queria livrar-se do maluco. Acabou por partir a chave. O carro ficaria fechado, nessa linda manhã de Primavera.
Meteu-se ao caminho, cuspindo impropérios. Seria um esticão, feito a pé, mas nada o faria perder a sessão semanal do seu desporto favorito. Quando virou, na outra ponta da rua, ouvia ainda o profeta do apocalipse, castigando sem piedade o paciente contabilista do sétimo esquerdo.
A caminhada acalmou-o. Respirou fundo e apreciou a paz que envolvia o bairro. Aqui e além, crianças brincavam felizes. Reparou num menino que tentava sem sucesso despir o blusão. Abordou-o, confiante, para a boa acção do dia. Bem se esforçou, mas o fecho polilon, encravado, não abriu. Ficou, figura de parvo, com a patilha partida entre os dedos. No resto do caminho, o choro convulsivo do petiz martelou-lhe a consciência.
O calor apertava. Decidiu matar a sede na máquina da esquina, com uma lata de sumo fresquinho. Partiu uma unha, somou mais uma patilha perdida entre mãos. E projectou contra a vedação de arame uma lata por abrir.Rosnou cumprimentos quando entrou no vestiário. Bufava, possesso. Sedento, nem assim se atreveu a tentar abrir a torneira, certo de mais um fiasco nesse dia de cão. Pegou no equipamento e seguiu o instrutor, sem proferir um som. A cada passo, foi concluindo que azar tem limites e auto-injectou-se de precioso optimismo.
O sorriso deliciado pelo vento frio no rosto morreu-lhe nos lábios. Porque diabo se havia de lembrar do "bruxo" num momento daqueles, interrogou-se, enquanto enfiava o indicador na anilha de abertura do pára-quedas...
Nas muralhas da cidade
Há 1 dia