16.5.08

A POSTA ESCAMADA (11/2004)

Palavra. Assim, quieta, num canto da folha. Sem sentido, à espera da companhia de outras como ela. As únicas capazes de lhe fornecer uma explicação de si mesma, perplexa com a ambiguidade de uma palavra só, quando apenas uma palavra deveria bastar.O sentido que lhe faltava não era uma lacuna no sentido convencional. O sentido, afinal, padecia do mesmo problema. Na condição de palavra e enquanto conjunto de letras que queriam dizer alguma coisa a quem as soubesse ler. Eram vários os sentidos que lhe atribuíam mas ele sentia-se único, atónito com a variedade nas interpretações possíveis para uma palavra só. Como se cada palavra fosse concebida para atrair mais companheiras, e criassem novas expressões, frases completas, parágrafos elucidativos, capítulos de um livro que alguém se orgulharia de publicar. Milhares de palavras reunidas para construírem uma coisa qualquer, importante. Decisiva até.

Palavra. À espera de companhia para poder comunicar melhor. Palavra só. Mas afinal já eram duas. Olha uma palavra só. De repente, a frase brota da boca, descodificada pela mente da pessoa que a compreendeu à sua maneira. Mais vale só? - interroga-se a palavra, intimidada com a falta de privacidade que a presença de outras palavras lhe pode acarretar. Palavras feias, talvez. Más companhias. Abeirou-se de imediato a pessimista e sentou-se à direita da palavra só. A palavra disse não sou. Mas parecia e por isso lhe enviaram o castigo pejorativo de uma péssima conotação. A palavra rotulada de pessimista não estava sozinha outra vez. Mas queria, ou assim julgava, até decidir meditar por algum tempo, a sós.E por isso a deixaram quieta, noutra zona da folha, à espera do que viria, riscos calculados de uma solidão voluntária que a iria (alegadamente) proteger. Receava ser mal interpretada, tinha medo da incompreensão. Palavra que sim, afirmou. Que sim lá ficaram e palavra aprendeu a gostar do novo sentido que o trio lhe conferia. Sentia-se uma palavra melhor. Entretanto aprendeu algo mais, formulou uma hipótese e testou as conclusões.

Palavras. Reunidas em harmonia, perfeitas na combinação. Inequívocas. Porém, palavras é só uma. Artificialmente multiplicada por se travestir num plural. Sem precisar de outras palavras para seguir no sentido que pretendia, individual no ajuntamento, virtual na sua realidade que ambicionava comunicar. Não precisou de uma multidão de palavras para melhor se exprimir, bastou-lhe sintetizar o espírito da união que a sua pluralidade traduzia. E para os bons entendedores, calculava, apenas uma letra bastaria.