31.5.08

MON COEUR S'OUVRE À TA VOIX* (Agosto 2005)

Só no esplendor de uma aurora encontro paralelo com o nascimento de um grande amor. A luz todo-poderosa que rompe o negro da noite e abafa o céu estrelado numa explosão laranja que nos ofusca, minutos após o sol despontar por detrás da linha do horizonte. Cega-nos, como a paixão. Acelera-nos o coração. Grava em todos os pedaços livres de memória a imagem de um rosto, o cheiro de um corpo ou o som de uma voz. É assim que se apodera de nós, prepotente, sem aviso. Sem trincheira ou blindado que nos proteja da invasão. Tombamos sem apelo nos braços de quem assim nos encantou.

O amor aquece como o astro-rei. E alimenta. Ignoramos a sede, a fome e o frio. Como plantas verdes, como girassóis, seguimos a luz que nos anima e carrega pela vida como um tapete mágico, pura levitação.Dá-nos uma força tremenda, capazes de tudo para lutar pelo objectivo que os restantes oblitera. Nada mais merece a nossa atenção, nada ouse atravessar-se no caminho de uma violenta paixão. Como uma brigada de cavalaria avançamos para a conquista inadiável de um amor, coragem no limite do desespero. Porque só a vitória se aceita nessa guerra sem quartel.Sem tréguas, empunhamos o melhor de nós e esgrimimos os argumentos que nos justificam vencedores. Até à cedência total, à perfeição. De um sim entoado com um sorriso apaixonado, do calor transmitido pelo toque suave de uma mão, de um beijo consentido, bandeira branca à nossa investida por um grande amor.

Cada dia brilha mais quando nos ilumina a atracção por alguém. Cada momento uma alegria, sol a pino, cada contacto um arrepio. A pele que nos fascina roçada pela ponta de uma mão. E depois a reacção, em cadeia, arrebatada, dançada como um tango pelos corpos em fusão. Nuclear, energia sem controlo. Mentes ligadas no momento da explosão. Solar, quente e cheia de luz. Húmida como um campo de espigas depois uma chuvada forte, de uma trovoada ao alvorecer.

O amor é mais forte do que a vida e por ele nos dispomos a abdicar do mais precioso dom. Quem não oferece o último suspiro em troca da respiração eterna de quem nos aprisionou no coração? A cobardia não contraria o impulso natural de quem ama, quando em defesa do alvo dessa devoção. Nem mesmo o instinto de conservação, ignorado sem apelo.Não existe Deus, nem Pátria ou qualquer outra causa mais nobre que consiga imaginar para me sentenciar o fim. Nada acima do amor. Mato e morro sem hesitar, certo da justeza dos meus propósitos e da firmeza das minhas convicções.

O ocaso da vida pensa-se mais sereno na companhia de quem amamos. Sem o espectro da solidão, sem o frio seco de uma alma desprovida de paixão. Com a luz na nossa frente, sempre presente para nos guiar. Carinho, conforto, agora mais perto do momento do adeus. Um até já, pois todos acreditamos na eternidade de um amor verdadeiro. E na saudade dos que partiram antes de nós existe a esperança de uma ressureição do nosso amor, transformado em energia, a mesma que irradia um olhar transfigurado pelo poder da emoção.A noite, a mesma que borrifa magia com um luar platinado ou com o céu rasgado por uma estrela que cai, é apenas mais uma incógnita no processo de transição para outro paraíso qualquer.
Quando o sol nascer outra vez.

*Saint-Saens, Samson et Dalile, com Maria Callas na interpretação.